segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Estado de Paz - 12

Obrigado pela tua paz. Se não te sentes em paz, então encara este texto como dirigido a esse dia a que há tanto aspiras.
Há um pensamento que me causa estranheza, e me parece absurdo, e muitas vezes me parece que é só a mim que causa estranheza. Felizmente nunca passei sede, muita sede, ou pelo menos durante muito tempo, tempo demais em que não tivesse a certeza que em breve a saciaria. Mas se tivesse passado sede, muita sede, e demorasse muito tempo a saciá-la, estou certo que isso me marcaria para sempre. O que me causa estranheza é que se eu tivesse passado por essa situação, não seria por isso e para onde quer que fosse, seja ao trabalho, ao cinema, à praia, sair com os amigos, às compras, que eu levaria um garrafão de 5 litros de água atrás com medo que ela me voltasse a faltar. Seria absurdo fazê-lo. No entanto, quase toda a gente o faz. Quase toda a gente se prepara com antecedência para que não lhe falte o que mais teme que lhe venha a faltar. Se for dinheiro, há quem não se importe de viver de uma forma muito modesta e ter uma conta recheada com medo que lhe venha a faltar. Se for saúde, há quem tome medicamentos mesmo sem necessidade para se prevenir de ficar doente e ter de tomar medicamentos. Se for espiritual, há quem siga uma religião e um Deus não por acreditar mas por medo de não acreditar e do que isso possa trazer à sua vida. Então, mas por estranho que pareça cada um carrega o seu garrafão, um peso desgastante em suas vidas, por ter medo que ao não levá-lo este lhe venha a ser útil, quando afinal é o carregar desse peso que acaba por enfermar as pessoas. Cada um sofre da doença que teme que venha a ser a sua doença, porque é em função dela que leva a sua vida. Por exemplo, se alguém passou por dificuldades financeiras quando era novo, fará tudo o que estiver ao seu alcance para jamais voltar a passar pelo mesmo. E tão ocupado andará a tentar não voltar a passar por essa situação que toda a sua vida roda à volta do não-passar-por-isso-outra-vez. E quando se aperceber dessa situação verá quantas coisas lhe passaram ao lado, tudo o que não viveu e não experimentou porque afinal o principal era não voltar a ter dificuldades financeiras. Tudo, no domínio do efémero, tem um prazo. Um prazo de validade. O prazo de validade é um espaço de tempo em que algo cumpre uma função e realiza a sua razão de existir. Passado esse tempo tem lugar uma transformação, e em vez de útil passa a ser um peso, em vez de são passa a prejudicial. O difícil é transportar esta noção de prazo para os nossos sentimentos e emoções. Quando o amor se transforma em possessão, quando o poder se transforma em subjugação, quando a generosidade genuína se transforma em show off, quando um desentendimento se transforma em guerra, quando uma tragédia se transforma em oportunismo, quando um sonho se transforma em utopia. Costuma-se dizer que a vida é mesmo assim. Pode ser que sim, mas também pode não ser. A Paz é uma chave universal. Funciona em todas as fechaduras, das mais ferrugentas às mais oleadas, e até funciona em portas abertas. Paz é capacidade de transformar o domínio do efémero em equilíbrio. Quem vive em paz não carrega garrafões de água porque sabe que esta jamais lhe faltará. Quando nos cumprimos e nos realizamos o que anteriormente era uma meta passa a ser uma ferramenta. Paz é a capacidade de pegar num fruto podre, com amor enterrá-lo, nutri-lo sabendo que até do fruto mais podre pode sair a semente mais nobre e que dará continuidade à vida, num processo contínuo. Paz é capacidade de pegar numa relação que não resultou e ver que o que não resultou não foi a relação mas a expectativa da sua duração. Paz é a capacidade de ver que somos o resultado também de tudo o que não resultou em nós, e por isso sorrimos e estamos serenos porque nos aceitamos com alegria. Aceitar-se é aceitar os outros.

A continuar…

M.A.S.

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